Indiciada por homicídio triplamente qualificado, tentativa de homicídio, falsidade ideológica, uso de documentos falsos e organização criminosa majorada pelo Ministério Público Estadual, a até então deputada federal Flordelis, apontada como mandante de todos esses crimes, continua circulando pelos corredores da Câmara, de tornozeleira à mostra.
Um verdadeiro seriado de horrores, provas falsas, inúmeros responsáveis e nenhuma resposta concreta. Viva a Justiça brasileira e a Câmara Federal em sua inversão de valores, em que, muitas vezes, o réu vira herói às cegas e uma deputada criminosa permanece assumindo seu cargo. Acredito que, quando votamos e elegemos nossos candidatos, além de preocupações com temas como educação, saúde e tantos outros, devemos estar atentos à questão da representatividade, por meio do voto popular.
O que isso significa? A quem delimitaremos poderes para nos representar politicamente? Infelizmente, assistimos a uma realidade bem diferente. Haja vista a deputada federal Flordelis ter sido a quinta mais votada do Rio de Janeiro nas eleições de 2018, um ano antes de seu marido, o pastor Anderson do Carmo, ter sido brutalmente assassinado com 30 tiros – ela foi indiciada como mandante do crime. Em uma democracia representativa, o povo delega o seu poder de ação a poucas pessoas, que irão tomar decisões em nome da população. E aí eu me pergunto: uma possível criminosa, com uma densa lista de acusações nas costas, pode representar seus eleitores? Prefiro crer que falta esclarecimento à população, que, meio às cegas, coloca seu “representante” no poder, como um salvador da pátria, sem pensar em seu passado ou presente, depositando nele suas expectativas e esperanças. Lamentável.
Para que se compreenda melhor como tudo se passou, vamos voltar ao ano de 2019, quando o pastor Anderson do Carmo, ao chegar em casa, em Pendotiba, bairro de Niterói, na madrugada do dia 16 de junho, foi assassinado com 30 tiros. De acordo com testemunhas, o pastor voltava de um jantar, acompanhado de sua esposa, e entrou na garagem para buscar um objeto esquecido no carro, onde recebeu os disparos. Segundo os primeiros depoimentos da deputada, seu marido morreu ao defender a família de um assalto, uma hipótese de latrocínio, roubo seguido de morte, logo afastada pela polícia. Com isso, a principal linha de investigações passou a ser a possibilidade de execução. No dia seguinte ao crime, o então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, revelou que as principais suspeitas recaiam sobre um dos 51 filhos adotivos do casal.
Durante o processo que acusa Flordelis como mandante dos crimes, muitas foram as suposições, entrelaçando histórias confusas, fake news – como a notícia de que a deputada teria um cargo de destaque na Secretaria da Mulher –, surgindo cada vez mais suspeitos, um desmentindo o depoimento dos outro, tornando a busca pela verdade um caminho obscuro, embora as evidências do envolvimento da pastora sejam bastante claras. A quinta deputada mais votada do Rio de Janeiro ficou conhecida, primeiramente, como missionária evangélica. A parlamentar nasceu na favela da Zona Norte do Rio e, ao trabalhar como balconista, sentindo as necessidades da comunidade – segunda ela –, passou a realizar trabalhos de evangelização em bailes funk e forrós. O trabalho ficou conhecido como Evangelismo da Madrugada. Foi quando conheceu Anderson do Carmo, com quem se casou logo depois. Em 1999, fundou a Comunidade Evangélica Flordelis e, em 2002, uma igreja do casal. Com o tempo, eles adotaram crianças “em série”, instrumentalizadas para um projeto messiânico e político. Os filhos biológicos de Flordelis são quatro. Cinquenta e um são adotivos. Desde 2018, houve, por parte da família, várias tentativas de envenenamento do pastor, sem sucesso, até chegar o dia do crime, em 2019.
Logo após o sepultamento, um dos filhos biológicos, Flávio, foi preso ao confessar que atirou seis vezes em Anderson, assim como Lucas, filho adotado, que efetuou a compra da arma. De acordo com a polícia, a deputada e os 55 filhos são suspeitos e investigados. Outra suposição da polícia é a de crime passional, pois Anderson tinha nove perfurações na região genital. Ou crime motivado por dinheiro. Ou ainda uma retaliação por Anderson ter tomado a frente de Flordelis no PSD. Tudo ainda mera suposição. Perícias realizadas nos celulares da família detectaram trocas de mensagens que sugerem que Flordelis desejava a morte do marido. As contradições nos depoimentos da deputada são inúmeras, apesar de ficarem claras as desavenças entre os familiares. Com o correr do tempo, surgiram novos depoimentos. No final de janeiro deste ano, a filha biológica da deputada, Simone dos Santos, disse ter sido vítima de várias “investidas sexuais” por parte de Anderson do Carmo, logo após um diagnóstico de câncer. Ela alega que Anderson ameaçou deixar de pagar seu tratamento se ela o recusasse. Em seu depoimento, admitiu ter dado dinheiro à irmã Marzy Teixeira para matar o pastor. O valor em questão, segundo Simone, foi de R$ 5.000,00. Quanto à participação da deputada no crime, a filha negou que a mãe estivesse a par de suas intenções. Muitas evidências, poucas provas, nenhuma atitude concreta. Simone permanece presa desde agosto de 2020, enquanto a principal suspeita de ter sido a mandante perambula pelos corredores da Câmara, exibindo sua tornozeleira eletrônica como um troféu.
O que pensar de tudo isso? Por que Flordelis ainda está solta? A resposta é simples. A deputada tem foro privilegiado. Embora o caso esteja no Conselho de Ética, muitos parlamentares tentam alguma manobra para salvar o mandato da colega. Cá entre nós, um Conselho nada confiável. É a vida que segue, em meio a novos fatos, como o relatado por uma das noras da deputada, Luana Rangel Pimenta, que falou à polícia a respeito da intenção de Flordelis de matar o marido. Além das acusações de recebimento de R$ 10 milhões em recursos para apoiar a candidatura de Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara, o que foi negado por sua assessoria. Na realidade, a parlamentar foi uma das contempladas com mais de R$ 3 bilhões em recursos destinados pelo governo para obras durante a campanha eleitoral. Hoje, a deputada comemora a vitória de Lira. Diante de todas essas “conquistas” alcançadas, como fica a posição da Câmara dos Deputados e o parecer do Legislativo perante tantas evidências de um crime ou de crimes cometidos a mando dela? Como aceitar que a Justiça permaneça de olhos cerrados perante os fatos? E lá vai ela, caminhando solta, aplaudida por seu seguidores e eleitores, cegos diante de uma realidade vergonhosa para um país desacreditado em suas leis. Indignação.
Por Paulo Mathias
Foto: Michel Jesus | Câmara dos Deputados